Numa espécie de síntese, questionemo-nos agora uma vez mais sobre de que gênero foi o encontro com o Senhor ressuscitado. São importantes as seguintes distinções:
- Jesus não é alguém que voltou à vida biológica normal e depois segundo as leis da biologia, teve um dia de morrer novamente.
- Jesus não é um fantasma (um "espírito"), ou seja, não é alguém que, na realidade, pertence ao mundo dos mortos, embora possa de algum modo manisfestar-Se no mundo da vida.
- Entretanto, os encontros com o Ressuscitado são uma realidade distinta de experiências místicas, nas quais o espírito humano é por um momento elevado acima de si mesmo e enxerga o mundo do divino e do eterno. A experiência mística é uma superação momentânea do âmbito da alma e das suas faculdades de percepção; mas não é um encontro com uma pessoa que externamente se aproxima de mim. Paulo distinguiu com grande clareza as experiências místicas - por exemplo, a sua elevação até o terceiro céu, descrita em II Corintios 12, 1-4 - do encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco, que era um acontecimento na história, um encontro com uma pessoa viva.
Baseados em todas essas informações bíblicas, que podemos verdadeiramente dizer agora sobre a natureza peculiar da Ressurreição de Cristo?
A Ressurreição é um acontecimento dentro da história que, todavia, rompe o âmbito da história e a ultrapassa. Podemos talvez servir-nos de uma linguagem analógica, que permanece, em muitos aspectos, inapropriada, mas pode abrir um acesso à compreensão. Como já fizemos na primeira seção deste capítulo, podemos considerar a ressurreição como uma espécie de salto radical de qualidade em que se entreabre uma nova dimensão da vida de um homem.
Sem dúvidas, a própria matéria é transformada num novo genero de realidade. Agora o Homem Jesus, precisamente com o seu próprio corpo, pertence totalmente à esfera do divino, do eterno. Desde agora em diante ´disse uma vez Tertuliano - "espírito e sangue" tem um lugar em Deus (cf. De resurrect. mort, 51,3: CCL lat., II 994). Embora, o homem, segundo a sua natureza, seja criado para a imortalidade, só agora existe o lugar onde a sua alma imortal encontra o espaço, aquela "corporeidade", na qual a imortalidade recebe sentido como comunhão com Deus e com toda a humanidade reconciliada. As Cartas (de Paulo na prisão) aos Colossenses (cf. 1,12-23) e aos Efésios (cf. 1,3-23) supõem isso, quando falam do corpo cósmico de Cristo, indicando assim que o corpo transformado d´Ele é também o lugar onde os homens entram na comunhão com Deus e entre si; e, desse modo, podem viver definitivamente na plenitude da vida indestrutível. Dado que nós mesmos não possuímos qualquer experiência de tal gênero renovado e transformado de materialidade e de vida, não devemos maravilhar-nos se isso ultrapassa aquilo que podemos imaginar.
Essencial é o dado de que, com a ressurreição de Jesus, não foi revitalizado um indivíduo qualquer, morto num determinado momento, mas na ressurreição verificou-se um salto ontológico que toca o ser como tal; foi inaugurada uma dimensão que nos interessa a todos, e que criou para todos nós um novo âmbito da vida, o estar com Deus.
A partir daqui, é preciso afrontar a questão acerca da ressurreição como acontecimento histórico. Por um lado, temos de dizer que a essência da ressurreição está precisamente no fato de que ela rompe a história e inaugura uma nova dimensão que, habitualmente, chamamos dimensão escatológica. A ressurreição descerra o espaço novo que abre a história para além de si mesma e cria o definitivo. Nesse sentido, é verdade que a ressurreição não é um acontecimento histórico do mesmo gênero que o nascimento ou a crucificação de Jesus. É algo novo, um gênero novo de acontecimento.
Ao mesmo tempo, porém, é preciso não esquecer que ela não está simplesmente fora ou acima da história. Como erupção para fora da história e para além dela, a ressurreição tem, contudo, o seu início na própria história e até certo ponto pertence a ela. Talvez se pudesse exprimir tudo isso assim: a ressurreição de Jesus ultrapassa a história, mas deixou o seu rastro na história. Por isso pode ser atestada por testemunhas como um acontecimento de qualidade completamente nova.
De fato, o anúncio apostólico, com o seu entusiasmo e a sua audácia, é inconcebível sem um contato real das testemunhas com o fenômeno totalmente novo e inesperado que os tocava externamente, e que consistia no manifestar-se e no falar de Cristo ressuscitado. Só um acontecimento real de uma qualidade radicalmente nova seria capaz de tornar possível o anúncio apostólico, que não se pode explicar através de especulações ou experiências interiores, místicas. Na sua audácia e novidade, o referido anúncio ganha vida da força impetuosa de um acontecimento que ninguém tinha ideado e que ultrapassava toda a imaginação.
Mas, no fim, para todos nós permanece a pergunta que Judas Tadeu dirigiu a Jesus no Cenáculo: "Senhor, por que Te manifestarás a nós e não ao mundo?" (Jo 14,22). Sim, tal é a pergunta que gostaríamos de fazer: por que é que não Te opuseste com força aos teus inimigos que Te levaram à cruz? Por que não lhes demonstraste, com vigor irrecusável, que Tu és vivente, o Senhor da vida e da morte? Por que é que Te mostraste apenas a um pequeno grupo de discípulos, em cujo testemunho temos agora de nos fiar?
A pergunta, porém, diz respeito não só à ressurreição, mas todo o modo como Deus Se revela ao mundo. Por que só Abraão, por que não aos poderosos do mundo? Por que só Israel, e não de modo indiscutível a todos os povos da terra?
É próprio do mistério de Deus agir desse modo suave. Só pouco a pouco é que Ele constrói na grande história da humanidade a sua história. Torna-se homem, mas de modo a poder ser ignorado pelos contemporâneos, pelas forças respeitáveis da história. Padece e morre, e, como Ressuscitado, quer chegar à humanidade apenas através da fé dos Seus, aos quias Se manifesta. Sem cessar, Ele bate suavemente às portas dos nossos corações e, se lhe abrimos, lentamente vai-nos tornando capazes de "ver".
Contudo, não é este precisamente o estilo divino? Não se impor pela força exterior, mas dar liberdade, conceder e suscitar amor. E - pensando bem - não é o aparentemente mais pequenino o o realmente grande? Porventura não irradia de Jesus um raio de luz que cresce ao longo dos séculos, um raio que não podia provir de nenhum simples ser humano, um raio mediante o qual entra verdadeiramente no mundo o esplendor da luz de Deus? Teria o anúncio dos apóstolos podido encontrar fé e edificar uma comunidade universal se não operasse neles uma força da verdade?
Se ouvirmos as testemunhas com coração atento e nos abrirmos aos sinais com que o Senhor não cessa de autenticar as Suas testemunhas e de atestar-Se a Si mesmo, então saberemos que Ele verdadeiramente ressuscitou; Ele é vivente. A Ele nos entregamos, sabemos que assim caminhamos pela estrada justa. Com Tomé, metamos a nossa mão no lado traspassado de Jesus e professemos: "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20,28).
Extraído do livro Jesus de Nazaré - Da entrada de Jerusalém até a Ressurreição, cap.9 pag 243-247, escrito por Joseph Ratzinger Bento XVI, traduzido por Bruno Bastos Lins, ed. Planeta

Nenhum comentário:
Postar um comentário