PERDOAI AS NOSSAS DÍVIDAS ASSIM COMO
NÓS PERDOAMOS AOS NOSSOS DEVEDORES
64. — Encontramos homens de grande sabedoria e força, mas quem
confia em sua própria força não trabalha com sabedoria nem conduz
até o final aquilo que se propusera fazer. Parecem ignorar que os
conselhos dão força às reflexões. Como ensinam os Provérbios (20,
18).
Mas notemos que o Espírito Santo que dá a força, dá também o
conselho; pois qualquer bom conselho relativo à salvação do homem
só pode vir do Espírito Santo.
O conselho é necessário ao homem, quando este sofre tribulações,
assim como o conselho do médico, quando se está doente. Quando
um homem está espiritualmente doente pelo pecado, deve pedir
conselho. E Daniel mostra que o conselho é necessário ao pecador,
quando diz ao rei Nabucodonosor (Dn 4, 24): Segue, ó rei, o conselho
que te dou, redime os teus pecados com esmolas.
O conselho de dar esmolas e ser misericordioso é excelente para
apagar os pecados. Por isso o Espírito Santo ensina aos pecadores
esta oração pedindo: Perdoai as nossas dívidas, assim como nós
perdoamos os nossos devedores.
Além disso devemos verdadeiramente a Deus aquilo a que Ele tem
direito e que nós lhe recusamos. Ora, o direito de Deus exige que
façamos Sua vontade, preferindo-a à nossa vontade. Ofendemos,
portanto, seu direito, quando preferimos nossa vontade à sua, e isto
é o pecado. Assim os pecados são nossas dívidas para com Deus. E o
Espírito Santo nos aconselha que peçamos a Deus o perdão de nossos
pecados e por isso dizemos: Perdoai as nossas dívidas.
65. — Sobre estas palavras podemos fazer três considerações:
a) Primeiro, por que fazemos este pedido?
b) Segundo, quando será realizado?
c) Terceiro, que devemos fazer para que Deus realize nosso pedido?
a) Da primeira, tiramos dois ensinamentos necessários ao homem,
nesta vida.
Um, que o homem deve sempre temer a Deus e ser humilde. Há
quem seja bastante presunçoso para dizer que podemos viver neste
mundo de modo a evitar o pecado. Mas isto a ninguém foi dado, a
não ser ao Cristo que possui o Espírito em toda a plenitude; e à Bem aventurada
Virgem, cheia de graça e imaculada, da qual dizia Santo
Agostinho: «Desta (Virgem) não quero fazer a menor menção,
quando falo do pecado». Mas a nenhum outro santo foi concedido não
cair em pecado ou, ao menos, não incorrer em algum pecado venial.
Diz, em sua Epístola, São João: Se dissermos que estamos sem
pecado, nós mesmos nos enganamos, e não há verdade em nós. (I,
1,8).
E isto tudo é provado pelo próprio pedido. Firmamos, pois, que a
todos, santos ou não, convém dizer o Pai Nosso, com o pedido:
Perdoai as nossas dívidas. Portanto, cada homem se reconhece e se
confessa pecador e indubitavelmente devedor. Se, pois, sois pecador,
deveis temer e vos humilhar.
O outro ensinamento é que vivamos sempre na esperança. Ainda que
sejamos pecadores, não devemos desesperar. O desespero nos leva a
outros e mais graves pecados, como nos diz o Apóstolo (Ef 4, 19):
Desesperando, entregaram-se à dissolução e a toda sorte de
impurezas.
É, pois, muito útil que sempre esperemos. O homem, por mais
pecador que seja, deve esperar sempre o perdão de Deus, se seu
arrependimento é verdadeiro, se se converteu perfeitamente.
Ora, esta esperança se fortifica em nós, quando pedimos: Pai nosso,
perdoai as nossas dívidas.
67. — Os hereges Navatini negavam essa esperança, dizendo que
aquele que peca, depois do batismo, não alcança a misericórdia. Ora,
isto não é verdade, se é verdade o que Cristo diz (Mt 18,32): Perdoeite
a dívida toda, porque me pediste.
Assim, em qualquer dia em que pedirdes, podereis obter a
misericórdia, se rogardes arrependidos por terdes pecado.
Se, portanto, por esse pedido, nasce o temor e a esperança e todo
pecador contrito alcança a misericórdia, concluímos o quanto é
necessário fazê-lo.
68. — b) Quanto à segunda consideração, é preciso lembrar que, no
pecado, são dois os elementos presentes: a culpa, pela qual se
ofende a Deus, e o castigo devido pela ofensa.
Ora, a falta é remida pela contrição, se esta é acompanhada do
propósito de se confessar e de satisfazê-la. Declara o Salmista (Sl 31,
5): Eu disse: confessarei ao Senhor contra minha injustiça; e tu me
perdoaste a impiedade de meu pecado.
Como dissemos, se a contrição dos pecados, com o propósito de
confessá-los, basta para obter sua remissão, o pecador não deve
desesperar.
69. — Mas alguém pode objetar: se a contrição do pecado redime a
culpa, porque é necessário a confissão ao sacerdote?
A esta pergunta responderemos: Deus, pela contrição, redime o
pecado, mudando o castigo eterno em castigo temporal; o pecador,
contrito, fica submetido à pena temporal,
Assim, se o pecador morre sem confissão, não por tê-la desprezado,
mas porque a morte o surpreendeu, irá para o purgatório onde,
segundo Santo Agostinho, sofrerá muitíssimo. No entanto, ao vos
confessar, o sacerdote vos absolve da pena temporal pelo poder das
chaves, ao qual vos submeteis na confissão; pois disse Cristo aos
Apóstolos (Jo, 20,22,23): Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem
perdoardes os pecados, serão perdoados e aos que os retiverdes,
serão retidos. Assim, quando se confessa uma vez, alguma parte da
pena é perdoada e do mesmo modo, quando se repete a confissão ou
se confessa, tantas vezes, quanto necessário, será totalmente
perdoada.
70. — Os sucessores dos Apóstolos acharam um outro modo de remir
a pena temporal: pelo benefício das indulgências. Para quem vive na
caridade, as indulgências têm o valor que o Papa lhes pode conferir.
Quando os santos fazem boas obras, sem terem pecado, ao menos
mortalmente, essas obras são úteis para a Igreja. Do mesmo modo
os méritos de Cristo e da bem-aventurada Virgem são reunidos como
um tesouro. O Soberano Pontífice e aqueles a quem ele confiou tal
cuidado, podem aplicar estes méritos, onde mais houver necessidade.
Assim, pois, os pecados são remidos, quanto à falta, peia contrição, e
quanto à pena, pela confissão e pelas indulgências.
71. — c) Quanto à terceira consideração: que devemos fazer para que
Deus realize nosso pedido, Deus requer, de nossa parte, que
perdoemos ao próximo as ofensas que nos fez. É por isso que nos faz
dizer: assim como nós perdoamos os nossos devedores. Se agirmos
de outra maneira, Deus não nos perdoará.
Diz-nos o Eclesiástico (28, 2-5): Perdoa a teu próximo o mal, que te
fez e a seu pedido teus pecados ser-te-ão perdoados. O homem
guarda sua ira para com outro homem e pede a Deus remédio? Não
tem compaixão de um homem seu semelhante, e pede perdão de
seus pecados? Sendo carne, conserva rancor e pede propiciação a
Deus? Quem lha alcançará por seus delitos? Perdoai, (Lc 6, 37), e
ser-vos-á perdoado.
É por isso que neste quinto pedido do Pai N'osso o Senhor nos põe
uma única condição: perdoai o outro. Se assim não fazemos, não
seremos perdoados.
72. — Mas poderíamos dizer: Direi as primeiras palavras do pedido a
saber: perdoai as nossas dívidas, mas não as últimas: como nós
perdoamos aos nossos devedores.
Quereis enganar a Cristo? Mas certamente não enganareis. Cristo
compôs esta oração e dela se lembra bem; como podeis enganá-lo?
Portanto, se dizeis com a boca, ratificai com o coração.
73. — Mas, perguntamos, aquele que não tem o propósito de perdoar
seu próximo deve dizer: Assim como nós perdoamos os nossos
devedores?
Parece que não, pois estaria mentindo.
Mas respondo que não estaria mentindo, porque não está rezando em
seu nome, mas em nome da Igreja, que não se engana. É por isso
que esse pedido foi posto no plural.
74. — Precisamos saber que há dois modos de perdoar o próximo. O
primeiro é o dos perfeitos, que leva os ofendidos a procurarem os
ofensores, como diz o Salmista: (Sl 33, 15): Procurai a paz.
O segundo modo de perdoar é comum a todos, é a obrigação de
todos; nada mais é que perdoar os que pedem perdão, como diz o
Eclesiástico; (28, 2) Perdoa teu próximo pelo mal que te fez e a seu
pedido teus pecados ser-te-ão perdoados.
75. — Bem-aventurados os misericordiosos, é o fruto deste quinto
pedido. Porque nos leva a ter misericórdia para com o próximo.